domingo, 31 de maio de 2009

- A Fidelidade

Não há virtude sem fidelidade. A fidelidade é virtude de memória.
Toda a dignidade do homem está no pensamento, todo pensamento se encontra na memória. Pensar é lembrar-se de seus pensamentos, querer é lembrar-se do que se quer.

A preocupação é pensamento do futuro. Do passado não temos mais nada a esperar. Epicuro dizia: " O esquecimento é um porto seguro".
Tudo que começa, tem inevitavelmente um fim. A inconstância é a regra. O esquecimento é a regra. O real (presente) é feito de instante a instante, é sempre novo, e essa novidade constante é o mundo.

Na verdade não esquecemos os fatos, apenas esquecemos de nos lembrar deles. É isso que os torna passado. Para que um pensamento permaneça na memória, não podemos deixar de pensar nele, caso contrário, esquecemos tal pensamento. É daí que nasce a fidelidade, da lembrança dos pensamentos.

Não se trata de ser fiel a qualquer coisa, já não seria fidelidade e sim obstinação, fanatismo, teima... É seu objeto que constitui seu valor. Não se muda de amigo como de camisa, e seria ridículo ser fiel a suas roupas e não aos amigos.

Ser fiel não desculpa tudo, ser fiel ao ruim é pior do que ser infiel. Os SS juravam fidelidade a Hitler, essa fidelidade no crime era criminosa. " Fidelidade ao mal é má fidelidade. E a fidelidade na tolice é uma tolice mais", observa Jankélévitch.

A fidelidade para ser louvável ou não, depende dos valores a que se é fiel. Ninguém dirá que ressentimento é uma virtude, embora ele permaneça fiel a seu ódio, a sua cólera. A virtude que queremos não é toda fidelidade, mas a boa fidelidade, a grande fidelidade.
Fidelidade virtuosa. Não basta lembrar-se. Pode-se esquecer sem ser infiel, e ser infiel sem esquecer.

Por que eu manteria minha promessa se hoje não sou o mesmo de ontem? Por fidelidade. O fundamento do meu ser e da minha identidade é puramente moral. Ele está na fé e fidelidade que jurei a mim mesmo.
Não sou realmente o mesmo de ontem, mas sou o mesmo unicamente porque assumo meu passado. Para se ter moral, é necessário ser fiel consigo mesmo, é aí que está a fidelidade. De outro modo não haveria deveres. Fidelidade impõe deveres.

Fidelidade é a virtude da memória, a infidelidade é sua falta (a infidelidade ocorre quando deixamos de lado - deixamos de pensar- o pensamento que nos impediria de cometer a infidelidade).

Muitas vezes lutamos contra a maré irresistível do esquecimento, que com o tempo encobre todas as coisas. Outras vezes lutamos com os protestos desesperados da memória, recomendando-nos o esquecimento.

O passado reclama nossa piedade e nossa gratidão, pois o passado não se defende sozinho, como se defendem o presente e o futuro... É este o dever da memória: piedade e gratidão pelo passado. O duro dever, o exigente dever, a obrigação de ser fiel.

Não temos de ser fieis ao que não tem valor. Ela deve dirigir-se ao que vale, e proporcionalmente ao valor do que vale. Fidelidade ao ódio não é fidelidade, mas rancor.

Fidelidade ao pensamento: Marcel Conche observa que todo pensamento correrá continuamente o risco de perder-se, se não fizermos esforço de guardá-lo. Não há pensamento sem memória, sem luta contra o esquecimento e o risco de esquecimento.
Isso significa que não há pensamento sem fidelidade. Para pensar é preciso não apenas lembrar, mas querer lembrar. A fidelidade é essa vontade.
Ser fiel a suas ideias, é não apenas lembrar-se de que as teve, mas querer conservá-las vivas (querer lembrar-se não apenas de que as teve, mas de que as tem).

Fidelidade a verdade, antes de mais nada! É nisso que a fidelidade se distingue da fé, do fanatismo. Ser fiel, para o pensamento, não é recusar-se a mudar de ideia (dogmatismo), nem submeter suas ideias a outra coisa que não a elas mesmas (fé), nem considerá-las como absolutos (fanatismo); é recusar-se a mudar de ideia sem boas e fortes razões.

Nem dogmatismo nem inconstância. Tem-se o direito de mudar de ideia, mas apenas quando é um dever. Fidelidade à verdade antes de mais nada.

Fidelidade à moral: Faz parte da sua essência que ela tem algo a ver com fidelidade. Para Kant a fidelidade é um dever - entre amigos ou esposos - mas o dever não poderia ser reduzido à fidelidade. A fidelidade está subordinada à lei moral.

A moral começa pela polidez e continua mudando de natureza, pela fidelidade. Fazemos primeiro o que faz, depois impondo-nos o que se deve fazer. Primeiro respeitamos as boas maneiras, depois as boas ações. Os bons costumes, depois a própria bondade.
Fidelidade ao amor recebido, a confiança manifestada, à lei, o amor da mãe, o amor do pai...

O dever, a proibição o remorso, a satisfação de ter agido corretamente, a vontade de fazer direito, o respeito ao outro... tudo isso depende no mais auto grau da educação, como dizia Spinoza. É apenas moral, e a moral não é tudo, não é essencial, o amor e a verdade importam mais.
A fidelidade está no princípio de toda moral, ela é o contrário da derrubada de todos os valores. Todas as barbáries deste século foram desencadeadas em nome do futuro. Toda moral, como toda cultura vem do passado. Não há moral que não seja fiel.

Fidelidade do casal: Que há casais fiéis e outros não, é uma verdade. Se entendemos por fidelidade nesse sentido restrito, o uso exclusivo e mutuamente exclusivo, do corpo do outro. Por que só amaríamos uma pessoa? Por que só desejaríamos uma pessoa? Ser fiel a suas ideias não é ter uma só ideia; nem ser fiel em amizade supõe que tenhamos um só amigo. Fidelidade nesses domínios, não é exclusividade. Por que deveria ser diferente no amor? Em nome do que poderíamos pretender o desfrute exclusivo do outro? É possível que isso seja mais cômodo ou mais seguro, mais fácil de viver talvez, ou mais feliz, e enquanto houver amor, pode ser.

Cabe a cada casal escolher, de acordo com sua força ou suas fraquezas. A verdade é mais importante que a exclusividade.
Há casais livres que são fieis, à sua maneira (fieis ao seu amor, fiéis à sua palavra, à sua liberdade comum) E tantos outros, estritamente fiéis, tristemente fiéis, em que cada um dos dois preferiria não o ser.

Não fazer sofre é uma coisa, não trair é outra, e é o que se chama fidelidade.
O essencial é saber o que faz com que cada casal seja um casal. O simples encontro sexual, por mais repetido que seja, não bastaria evidentemente para tanto. Mas também não a simples coabitação, por mais duradoura que seja.
O casal nesse sentido, supõe portanto a fidelidade, pois o amor só dura sob a condição de prolongar a paixão por memória e vontade. É o que significa o casamento sem dúvida, e que o divórcio vem interromper.

Continuar sendo fiel após a separação, é ser fiel ao que viveram juntos, a história que construíram, ao amor que sentiram. Não querer renegar tudo. Nem um casal poderia durar sem essa fidelidade em cada um, à sua história comum, sem esse misto de confiança e de gratidão pelo qual os casais felizes (há alguns) se tornam tão comoventes ao envelhecer, mais até que namorados principiantes, que não fazem mais que sonhar seu amor.

Essa fidelidade é essencial ao casal. Que o amor se aplaque ou se decline é sempre o mais provável, e é bobagem se afligir com isso. Mas quer se separe ou continue a viver junto, o casal só será casal por fidelidade ao amor recebido e dado, ao amor partilhado e à lembrança voluntária e reconhecida desse amor.

A fidelidade é o amor conservado ao que aconteceu, o amor ao amor, amor ao presente (e voluntário e voluntariamente conservado), ao amor passado. Fidelidade é amor fiel, e fiel antes de mais nada ao amor.

Como eu poderia jurar que sempre te amarei ou que não amarei outra pessoa? Quem pode jurar esses sentimentos? E para que, quando não há mais amor, manter a ficção, os encargos ou as exigências do amor? Mas isso não é motivo para renegar ou não reconhecer o que houve.
Por que precisaríamos, para amar o presente, trair o passado? " Eu não juro que sempre te amarei, mas que sempre permanecerei fiel a esse nosso amor". Como? Não me esquecendo desse amor que vivemos.

O amor infiel não é o amor livre, é o amor esquecidiço, o amor renegado, o amor que esquece ou detesta o que amou e que portanto, se esquece ou se detesta. Mas será isso ainda amor?
" Ama-me enquanto desejares, meu amor, mas não nos esqueça".

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