Se a virtude pode ser ensinada, é mais pelo exemplo do que pelos livros. Esse tratado é uma tentativa de compreender o que deveríamos fazer, ou ser ou viver, e medir com isso o que nos separa desse caminho, pelo menos intelectualmente.
Como dizia Spinoza, não é útil denunciar os vícios, o mal, o pecado.
O bem só existe nas boas ações, que a tradição designa por virtudes.
O que é uma virtude? É uma força que age ou pode agir. Assim como a virtude de um remédio que a de tratar, a de um homem pode ser a de querer agir humanamente.
Virtude é poder, mas poder específico. A virtude do heléboro não é a cicuta, a virtude da faca não é a da enxada, a virtude do homem não é a da cobra.
A virtude de um ser é o que constitui seu valor, sua excelência própria: a boa faca é a que corta bem, o bom remédio é o que cura bem, o bom veneno é o que mata...
As virtudes são independentes do uso que delas se faz, como do fim a que se destinam. Ou seja, elas existem independente de serem usadas ou não, independente de quem as usa - o bom ou o mau - continuam tendo sempre a mesma função, e independente de como serão usadas e para que serão usadas. A faca não tem menos virtude na mão do assassino que na do cozinheiro, nem a planta que salva tem mais virtude do que a que envenena. Qualquer que seja a mão, a melhor faca é a que corta. À faca basta cumprir sua função.
Uma faca excelente na mão de um homem mau não é menos excelente por isso, nem uma excelente faca na mão de um homem bom será melhor do que já é.
Virtude é poder, e poder basta a virtude. Mas ao homem não, à moral não. O que adianta o bem se não é praticado?
Qual é a excelência própria do homem? Aristóteles respondia que é o que o distingue dos animais, ou seja, a vida racional. Mas a razão sozinha não basta: também é necessário o desejo, a educação, o hábito, a memória...
O desejo de um homem não é o de um cavalo, nem os desejos de um homem educado são os de um selvagem ou de um ignorante.
A virtude de homem é o que o faz humano, é o poder específico que tem o homem de afirmar sua excelência própria, isto é, sua humanidade.
A virtude é uma maneira de ser, explicava Aristóteles, nossa maneira de ser e de agir humanamente. Nossa capacidade de agir bem. " Não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente", dizia Montaigne.
Isso que os gregos nos ensinaram, que Montaigne nos ensinou, tb é lido em Spinoza: " Virtude no sentido geral é poder, no sentido particular, poder humano". Virtudes morais, é o que faz um homem parecer mais humano, mais excelente do que o outro, como dizia Montaigne e sem os quais, como dizia Spinoza, seríamos qualificados de inumanos.
Isso supõe um desejo de humanidade (não há virtude natural), sem o qual qualquer moral seria impossível.
A virtude é uma disposição de fazer o bem, ela é o próprio bem. O bem não é para se contemplar, é para se fazer. Assim é a virtude: o esforço para se portar bem.
As virtudes são nossos valores morais encarnados, vividos em atos. Sempre singulares como cada um de nós, sempre plurais como as fraquezas que elas combatem ou corrigem.
Toda virtude é um ápice entre dois vícios, uma cumeada entre dois abismos: assim a coragem entre a covardia e a temeridade, assim a dignidade entre complacência e o egoísmo, ou a doçura entre a cólera e a empatia. Mas quem pode viver sempre no ápice?
Pensar as virtudes é medir a distância que nos separa delas. Pensar na sua excelência é pensar nossas insuficiências ou nossa miséria.
A reflexão sobre as virtudes não torna ninguém virtuoso, no entanto essa reflexão acaba por desenvolver em nós uma virtude, pelo menos uma, que é a humildade.
A evidência de que carecemos delas, quase todas e quase sempre, e de que não poderíamos nos resignar à sua ausência nem nos isentar de nossas fraquezas.
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